Acordei com os primeiros raios de sol que invadiam o remanso do meu quarto de hotel. Senti-me como novo após uma longa e revigorante noite de sono.
O primeiro dia em Portugalistão havia sido desconcertante, mas nada que me fizesse desanimar. Até porque tinha os meus próprios planos para lidar com a situação, de modo a conseguir entender a realidade por detrás da máscara do regime.
Saltei da cama para o duche gelado, vesti-me rapidamente e desci para o pequeno-almoço. Quando me preparava para entrar no salão onde estava a ser servido, fui abordado pela maître d'hôtel que, com a maior desfaçatez do mundo, me fez de imediato relembrar onde realmente estava:
- Bom dia, senhor! Poderá, por gentileza, informar-me do número da sua habitação?
- Bom dia, é o 1905.
- Só um momento, por favor... não tenho indicação de que alguém esteja presentemente hospedado nesse quarto, tem a certeza?
- Absoluta, minha senhora; mas sempre lhe digo que inicialmente me estava atribuído o 1893 - mudei para este devido a uma avaria no ar condicionado.
- 1893? Senhor B. Gode?...
- Exactamente.
- Ah, muito bem, alguém se esqueceu de actualizar a informação.
- Óptimo. Agora que está esclarecido, posso ir tomar o meu pequeno-almoço?
- Claro que sim, senhor... mas está ciente de que não está incluído no preço do quarto, correcto?
- Como?? Claro que está, paguei antecipadamente!!
- Não está não, senhor. Terá de esclarecer com a sua agência, mas entretanto, se quiser tomar o pequeno-almoço continental, ser-lhe-ão cobrados €50.
- Cinquenta Euros por um pequeno-almoço que ainda por cima já paguei??
- Está tabelado, senhor. Claro que poderíamos fazer um acordo, dava-me €25 e eu...
- Esqueça! - interrompi-a já irado. E saí porta fora, rumo ao primeiro café que encontrasse.
Por uns momentos, caminhei freneticamente enquanto falava sozinho, indignado com o nível de extorsão que reinava neste país. Se com um simples turista era assim, como seria nas mais altas esferas da sociedade?
Não terá demorado mais de um minuto até encontrar o primeiro café, a Pastelaria Calabote. Sem saber bem o que esperar, entrei. A medo, dirigi-me ao balcão e expliquei pretender tomar o pequeno-almoço. O empregado olhou-me com ar desconcertado, como se o pedido lhe soasse estranho:
- Deseja pequeno-almoço? Pois claro, é o que mais fazemos aqui a esta hora... sente-se numa mesa à sua escolha e faça o pedido...
- Não me vão cobrar mais por estar sentado?
- ...?
- Está bem, vou-me sentar.
Fiz o pedido, prontamente servido, e devorei-o em quase nada. Só então me lembrei que tinha saltado o jantar. E pedi mais um reforço, perante o sorriso trocista da empregada. Enquanto esperava pela segunda ronda, peguei no bloco de notas e comecei a rever o plano para o dia.
Antes de viajar, tinha assegurado um encontro com alguém que supostamente me conseguiria pôr em contacto com a tal Resistência nortenha, uma denominação excessiva porque jamais utilizada pela propaganda oficial. Aliás, a ideia mais insistentemente passada era a de um unanimismo e felicidade absolutos.
Nunca se ouvia falar em contestação, dissidência, muito menos em resistência. Pelo menos fazendo fé nos media da capital Carnidul, todos eles obviamente controlados pelo regime do General Ventoinhas. A única mensagem veiculada a toda a hora era a de uma cidade gloriosa, habitada por cidadãos felizes e trabalhadores, sempre em prol da grande referência do regime: o NeNfica. Do resto do país, quase não se ouvia falar, excepto para reforçar a noção do apoio universal ao clube e ao regime.
Durante muitos anos apenas uma colectividade desportiva, o NeNfica foi o ponto de partida para a ascensão do general até ao poder absoluto. Enquanto mero presidente do clube, apercebeu-se da imensa força que o Benfica representava na sociedade da capital, ao ponto de muitos dos mais altos dirigentes das várias instituições políticas, económicas e judiciárias estarem sempre dispostos a dobrar as leis em favor do seu NeNfica.
Sobretudo naquele período em que ainda ressacavam do imenso sofrimento que o seu grande rival - do Norte, pois claro - lhes havia infligido durante mais de três décadas de domínio absoluto do desporto nacional, consubstanciadas nos inúmeros títulos nacionais e internacionais conquistados nas várias modalidades, com destaque óbvio para o rei-futebol.
O hábil Ventoinhas, já muito experimentado de outras aventuras anteriores à margem da legalidade, foi paulatinamente forçando a saída dos que se lhe opunham, fosse num ministério, num tribunal ou nas forças de segurança, substituindo-os por acólitos da sua inteira confiança, replicando o mesmíssimo modelo que havia implementado com tanto sucesso nas instituições do futebol. Daí até controlar todo o aparelho do estado portugalistês foi um pequeno passo. É este o cenário actual no Portugalistão, um "paraíso" de felicidade vermelha, sem oposição nem descontentamento. Oficialmente, pelo menos.
Era meu objectivo ir ao fundo da questão e perceber até que ponto este estado de graça era real. Para isso, tinha de começar pelo tal contacto. Como se de um romance de espionagem se tratasse, tinha instruções bem específicas a cumprir para chegar à fala com a dita personagem. Ele fizera questão de que assim fosse, "para sua segurança e da sua família". O ponto de partida para a grande aventura era às nove da manhã em ponto. Já faltava pouco, apressei-me a deglutir o que ainda sobrava, enquanto sentia um arrepio de emoção a subir pela espinha.
Às oito e cinquenta e oito estava já no primeiro sítio combinado. Um telefone público, pois claro, numa rua secundária da cidade onde o sol quase não tinha permissão para entrar. Às nove em ponto, ele tocou. Atendi:
- Bom dia, sou o Johnny... - do outro lado, alguém disparou de imediato:
- Quem é que é nosso amigo?
- O Celta de Vigo - respondi, conforme combinado.
- Daqui a um minuto, vai parar um Peugeot verde exactamente onde está agora, com as duas janelas do seu lado totalmente abertas. Entre para o banco da frente e não faça perguntas. Será trazido até mim.
- Como é que eu sei que... - a chamada tinha sido terminada.
Um exacto minuto depois, a minha boleia chegou. Entrei, fechei a porta e nem tentei falar. Aliás, apenas por uma vez olhei de soslaio o condutor. E chegou-me. Mantive-me em alerta total, a tentar disfarçar os nervos. Onde me iria levar? O que me iriam fazer?
Apercebi-me de que estávamos a sair da cidade enquanto o Peugeot verde atravessava a Ponte Cosme Lampião. O trânsito ficou mais fluido e eu comecei a descontrair. Porque se haveriam de dar a todo este trabalho se não acreditassem em mim?
De repente, uma avalanche de pensamentos contrários assoberbou-me. E se achassem que era um espião do regime? Iriam torturar-me, com certeza. Quem sabe se "apagar-me" e atirar o meu corpo já sem vida para o fundo do rio, onde jamais seria descoberto. Ou pior, oferecer-me vivo como petisco aos seus crocodilos de estimação (sim, crocodilos, nunca viram Live and Let Die ou Miami Vice?). O suor escorria-me agora, indisfarçável, fontes abaixo.
- Está tudo bem consigo? Está pálido, parece que vai desmaiar.
O sobressalto da inesperada interpelação quase me matou de susto, mas logo me senti um pouco mais reconfortado pelo tom da voz.
- Sim, sim, dormi um pouco mal, só isso.
- Então descanse e recomponha-se, já não falta muito.
Algum tempo depois, não sei bem quanto porque havia perdido a noção do tempo, desviamos da estrada nacional para um caminho de terra que atravessava um bosque, logo após termos entrado numa localidade chamada Alcochete.
Uns quantos minutos e solavancos pela densa vegetação até chegar a uma clareira, ao fundo da qual se podia avistar um conjunto de instalações que, à medida que me fui aproximando, me deu a sensação de estarem abandonadas. Não havendo nada mais nas proximidades, certamente seria esse o destino.
- Chegamos. Saia, contorne o edifício principal pela sua esquerda e entre na primeira porta que vir aberta. Não fale até que falem consigo.
Olhei o condutor nos olhos pela primeira vez, já não me parecia tão assustador, mas nem por isso me senti confiante. Com um gesto facial insistiu para que fizesse o que me ordenava. Não me atrevi a questionar.
Ao dirigir-me para o tal edifício, vislumbrei o que parecia ter sido um campo desportivo e uma estátua parcialmente destruída e já semi-coberta pela vegetação. Sugeria ser uma espécie de felino, mas não era perceptível qual. Talvez um tigre, talvez um gato.
Entrei na primeira porta, estava encostada e assim a deixei. Lá dentro estava escuro, demasiado para conseguir caminhar sem ser às apalpadelas e com os braços esticados como um figurante de TWD. Antes que pudesse esbarrar em alguma coisa, a luz acendeu-se.
- Seja bem-vindo, Johnny. Sente-se. - disse uma voz pigarreada que parecia ser a mesma do telefone.
- Obrigado... com quem estou a falar?
- Comigo. Mas a pergunta importante é com quem é que eu estou a falar. Quem é você, Johnny? O que o motivou a deixar o conforto do seu belo país para se vir pôr em perigo, no meio de uma alhada de um país periférico?
- Em perigo? Mas...
- Acha que isto é uma brincadeira?
- Não, de maneira nenhuma. Estou aqui porque sou jornalista de investigação e quero saber o que se passa ao certo em Portugalistão.
- Como sei que posso confiar em si?
- Não sabe... mas eu estar aqui, longe do "meu conforto", deve querer significar alguma coisa.
- Está bem, digamos que acredito em si. O que pretende de mim?
- Quero que me ponha em contacto com a Resistência do Norte. E que me ajude a entender o que se passa aqui neste país.
- Resistência? Nunca ouvi falar.
Não ia ser fácil ganhar a confiança deste estranho estranho. Tinha de ser audaz ou arriscava-me a ser mandado embora de mãos a abanar.
- Ouça, desde que sou jornalista que sempre me bati pela liberdade e pela justiça, não importa onde nem para quem. Pode comprová-lo pelo meu trajecto profissional. Vim até aqui porque quero dar a conhecer ao mundo o que se passa no seu país, mas só o poderei fazer se falar com as pessoas certas, que me mostrem o que se esconde debaixo da propaganda do regime. Vai ajudar-me ou não? - Esforcei-me para não engolir em seco e assim denunciar o meu bluff.
O homem por detrás da voz revelou-se finalmente, saindo da penumbra. Tinha um ar um pouco tresloucado e peles descaídas, como se tivesse emagrecido substancialmente.
- O discurso é bonito e fluente, falta saber se está disposto a arriscar o seu pescoço para saber a verdade. Está?
- Se não estivesse, não estava aqui.
- Ó Geada, vem cá.
Entra uma figura sinistra e senta-se à minha frente.
- Este é o meu homem de confiança, dedicado à anti-propaganda ventoinhista. Geada, conta-lhe o filme todo.
As horas seguintes foram passadas a ouvir os muitos relatos, alguns ilustrados com imagens e documentos, dos incontáveis atropelos do regime aos direitos e liberdades fundamentais consagrados na Constituição, outrora lei fundamental da nação, hoje nada mais do que uma memória algo apagada. A cada pergunta minha, desfiavam-se mais cinco, seis, dez situações semelhantes que demonstravam bem a enormidade dos tentáculos do aparelho liderado pelo General Ventoinhas - que, a propósito, nem sequer cabo-raso era: tinha-se apropriado da patente, como aliás de tudo o resto.
O ponto alto deste encontro chegou mesmo no final:
- Johnny, vou confiar em si. Prepare-se para ir até ao Porto amanhã, lá encontrará quem tanto deseja conhecer.
- A sério? Excelente! Como farei para?...
- Tudo a seu tempo. Agora tem de regressar a Carnidul, escreva qualquer coisa sobre a nossa bela capital (entregou-me um guia da cidade), para ter que mostrar se for interpelado pela P.I.R.O.C.A. E vá jantar, homem, não fique no quarto como ontem. Comporte-se como um turista!
Fixei-o por um momento. Como sabia que tinha ficado no quarto? Mas claro, num estado policial, quem quer ser oposição tem de se comportar pela mesma bitola. Obviamente não arriscariam encontrar-se comigo sem vigiar todos os meus passos. E se eles o faziam, será que o regime também não estava de olho em mim? Apaguei de imediato esse pensamento e despedi-me, com uma última pergunta:
- Posso ao menos saber o seu nome?
- Bardamerda para quem apoia o regime!
Saí de lá já o dia começara a escurecer, outra vez esfomeado (parecia sina), mas preenchido pelo sentimento de que poderia mesmo conseguir chegar a algum lado com esta reportagem, quem sabe até ganhar mais um prémio internacional, se recolhesse evidências que expusessem, sem margem para dúvidas, a perversidade deste regime.
Fui conduzido até uma entrada da cidade, onde me indicaram alguns restaurantes para saciar a minha fome e me explicaram como fazer para regressar de forma insuspeita ao hotel. Optei logo pela sugestão que ficava mais próxima de onde me tinham deixado, apenas a uns quarteirões de distância. Mesmo sendo ainda cedo, entrei confiante no restaurante.
- Boa noite, venho para jantar. Que especialidade tem hoje para me oferecer?
- Boa noite, cavalheiro, seja bem-vindo ao Manjar do Mantorras. Tem algum voucher?
- Ah... não... sou turista.
- Ah, compreendo. Nesse caso, ainda é um pouco cedo para jantar, normalmente só abrimos às vinte horas... mas se me der um pequeno incentivo, talvez eu consiga demover o Chef Melão Calado a preparar-lhe de imediato um manjar dos deuses...
Estava tão esfomeado que cedi sem contestar. Vinte euros de gorjeta adiantada e lá consegui, finalmente, ter uma refeição digna do nome. E que bem se come (e bebe) neste país!
Regressei ao hotel satisfeito, enfartado até, pois não sabia quando chegaria a próxima. Adormeci entusiasmado com o que teria pela frente na manhã seguinte.
(fim da segunda parte)
Do Porto com Amor,
Lápis Azul e Branco
Continua em: Parte III
Caro Lápis, o Johnny não desanimou ao fim do primeiro dia no Portugalistão, embora desconcertante, e tal já é merecedor de encómios mesmo estando de passagem. Por outro lado gabo-lhe a persistência em tentar entender a realidade deste Portugalistão surreal e à revelia de qualquer parâmetro definidor de um País arejado, onde, quem não perfilha a cartilha Carnidul, nem frequenta a Pastelaria Calabote ou Manjar Mantorras, ainda por cima sem vouchers, está condenado ao ostracismo ou, pior ainda, é denegrido pelos seus méritos, virtudes e conquistas. Não tivesse eu em conta o Johnny como um jornalista sequioso da verdade e equidade nas suas análises e congratulava-me pelo desconforto que lhe provoca a sua estadia no Portugalistão. Nada que me surpreenda, já que, embora vivendo há muitos anos neste simulacro de país, há muito que me habituei e, vale-me, sobretudo, fazer parte da tal Resistência Nortenha, olhe que ela existe e resiste e vai acabar por encontrá-la não duvide caro Johnny. Não há Ventoinhas que que afastem o calor desta paixão: FC PORTO.
ResponderEliminarGrande abraço e...
FC PORTO SEMPRE
Não consigo acrescentar sem estragar, obrigado :-)
EliminarUm abraço
No pares, sigue, sigue. Mete o Mike Hammer aí pelo meio. Sei lá, lembrei-me do Spillane. É um elogio! :)
ResponderEliminarJá não me lembrava desse cromo, acabei a ver um episódio no tube. Um verdadeiro jornalista de investigação é isso mesmo, um PI. They don't make'em like that anymore (pelo menos por cá).
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