Do Silva da Tasca (Speakers' Corner)

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Do Silva da Tasca (Speakers' Corner)


Dando asas aos ideais democráticos do DPcA, eis a segunda edição do Speakers' Corner, um espaço criado para que todo e qualquer leitor se possa exprimir sobre o que bem entender, como melhor lhe parecer.

E que edição esta. Nem mais nem menos do que o orgulhoso proprietário da Tasca do Silva, uma casa única na bluegosfera, que merece ser visitada todo o santo dia - mesmo não havendo novos petiscos, voltar e provar os anteriores, ligeiramente aquecidos, pode acabar por ser toda uma nova degustação. Porque o senhor Silva escreve maravilhosamente bem - não pela escrita em si mesma, mas pelo que provoca. 

Assegure-se o estimado leitor de que dispõe de uns saborosos cinco minutos livres antes de começar a ler - prometo que será recompensado.

(LAeB) 




BÊBADO(S?) NO CANTO DOS FALANTES



Às vezes fecho mais cedo e termino o dia aqui, inevitavelmente neste canto na penumbra. Gosto desta localização estratégica: mais personagem que narrador, mais vigia que participante. Mais longe, no fundo.

Tem dias que me fico por cá, a trocar fumo de cigarros pelo cheiro das cigarrilhas do dono. Outros em que ninguém se senta nessa cadeira. Um por outro em que coincidências me trazem amigos de sítios diversos.

O que não supunha era que me Aparecesses. Sempre pensei que aconteceria em casa, eu tapado até aojolhos com dois cobertores, numa manhã fria. Ou na zona de fumadores da Tasca.

- Nana, meu menino, campo neutro. Querias jogar em casa, era? - Sorri, pândego. Puxa para si um copo de fundo grosso e a garrafa de vodka.

- Oh, quero lá saber. O que me incomoda é essa luz a infectar-me as dioptrias. Nada discreto, hein? - Avio a minha vodka, num copo igual ao dele, de um glo só. Refill.

- Nem me fales. É um perfeito tormento. Mas não consigo lembrar-me de como se desliga isto. Havias de tentar adormecer com esta luminosidade toda a emanar-te da nuca ou lá de onde pujisto a vir. Que maçada.

- Pode ser. Também não é por isso que me vou condoer. Estamos um belo bocado esquinados, eu e Tu. Está claro que já sabias.

- Que queres? Não é como se isto fosse uma novela e eu o guionista.  Até preferia, que era tudo muito mais tranquilo. Mas não se dá o caso, paciência.

- Ah, bem, pensei que essa coisa da omnipresença e da omnisciência fosse a sério. Afinal, andajájaranhas como nós. - Quase esboço um sorriso.

- Ui, ui, ajomnicoisas. Uma carga de trabalhos, nada mais. Tem um gajo que estar em todo o lado e saber todas as coisas. Chiça, já imaginaste? Há sítios onde preferia não estar, entendes? E coisas que não quero saber, ponto. Well, nada feito, não pode ser. - Baixa a cabeça, pensativo.

- Lá está, ninguém escapa à sua natureza...

- Pfff, balelas. Pois se fui eu que inventei tudo isto. - Descreve um arco com a mão direita. - Ainda hoje me pergunto onde estava com a cabeça, raisparta!

- Either way, não é o melhor momento. Quem sabe daqui a muito tempo tenha menos raiva ou assim.

- Oh, eu quero lá saber da tua raiva. Apeteceu-me hoje, está feito. Mantenho uma série de benefícios em relação a vocês, comuns. - Pisca um olho.

- Vejo que sim. O poder da Vida e da Morte, por exemplo. Que bela lambada Te dava, não fosse saber que És só um vapor de Vodka marada.

- Ou então não...

- Epá, mas sou a Joana Solnado? Deixa-Te de tretas.

- Não, essa é com o catraio que se comunica. E é muito interessante que não estejas em êxtase por me pores as vistas em cima.

- Já Te disse que estou de mal Contigo. Foste uma besta, essa é que é essa.

- Jovem, jovem. - Abana a cabeça. - Por acaso achas que eu tenho tempo e paciência para me encarregar dos detalhes? Se morre este ou nasce aquela?

- Acho! Afinal, não se trata da Tua obra mais perfeita? Belo serviço, sim Senhor. Palmas para o Autor. Woohoo, bis, bis. - Bato palmas.

- Se calhar, deixavas de ser sarcástico. Diz que não dá muita saúde irritar-me. Pá, não sou eu quem diz. Diz-se por aí, nem sei bem quem. - Solta risinhos irónicos.

- Uh, uma ameaça! A seguir quê? Tiras-me o Livre Arbítrio?

- Nop, isso não dá. Ainda estou para saber como é que embarquei nessa coisa do Livre Arbítrio, credo. Que belo molho de brócolos fui arranjar. Mas pronto, pensei que tinha tido mais cuidado com a vossa inteligência. Chego à conclusão que estive mais inspirado na parte das mamas do que na do cérebro. Nem mais, para Obra Mais Perfeita, eram uma bela trampa, eram sim senhor. Tirando as gajas, está claro.

- Pá, foda-se, ninguém te pediu nada!

- Não?

- Bom, sim, está bem, pedimos. Tu percebeste. Não pedimos essa pessegada do Adão e tal...

- A verdade é que, de alguma forma estranha, vocês me espantam continuamente. E nem sempre por maus motivos. Só quase sempre.

- Blablabla, lérias. Não tarda, estás à espera que Te agradeça qualquer coisinha. É preciso ter lata.

- Sim, espero. Porquê? Tu, tão religiosamente cético, tão lucidamente cheio de dúvidas, porventura crês que não me deverias nenhum agradecimento? - Fixa-me o olhar.

- Repito-Te: Não é a melhor altura. - Desvio.

- Agora mesmo, neste instante! Nada por que agradecer? Digamos que eu não era um mero efeito da destilação dessa vodka. Tu, cheio de toda essa injustiça, nada por que dar graças?

- Muito. - Um cisco faz-me lacrimejar, acompanhando as pessoas que Amo acima da Vida e me desfilam nos olhos.

- Aí tens! Muito, nunca tudo. Pouco fosse, nunca é nada. - Deixa o copo bater com estrondo na mesa. Vazio, de novo. Inspira muito profundamente, reprime o que devia ser um soluço e diz, deixando sair o ar: - Agradece!

- Estou grato. - Inapelavelmente.

...


Ele passa-me uma manta pelos ombros. Estende-me a mão.

- Então, adormeces aqui, no Canto dos Falantes? Já fechei tudo, só sobram as luzes de emergência. Desculpa ter-me distraído, mas viste que tinha o tasco cheio. Maldita vodka, hein? - Sorri gozão. - Anda daí, levo-te a casa.

...


- Senhor! - Grita, enquanto abre as enormes e pesadas cortinas. - Senhor, Você nos livre, mais uma série de grandes desgraças. Era suposto Vossa Senhoria não dormir, caramba!

- Pedro, Pedro, grita mais baixinho, se fazes o favor. E traz-me duas aspirinas e um Guronsan, muito rápido. - Puxa os cobertores até taparem a queixada.


Soundtrack to vodka on the speakers corner: It's a wild ride


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Por esta altura, o grupo dos leitores que já são habituais da Tasca pensam para com os seus botões "caramba, que até esta espelunca fica com um ar ligeiramente distinto quando assim apresentada!". Os que ainda a não conheciam, "ando eu a desperdiçar o meu tempo aqui, quando existe ISTO noutro lado...". Pois sim, só há um pequeno senão: é que o Silva não vê um boi de bola.


Obrigado pela partilha Silva; e que, tê-lo feito, te faça bem.



Lápis Azul e Branco,

Do Porto com Amor



17 comentários:

  1. Epá, Silva vintage! Muita bom, como sempre. E os itálicos najoutrascoijas... um show.

    Parabéns a um pelo texto - como sempre - e ao outro pela idéia -como sempre.

    Aplausos.

    Abraços

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    1. Tu também não contas. Tipo, olha o Ranheta a falar bem do Cócó. Ainda vai aparecer aí o Facada :)))

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    2. Ei ei... os itálicos são de minha autoria!

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    3. Majágora... parabéns ao senhor Vassalo superstar! :-)

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    4. Pois, xôr Lápis, estava a elogiar vossxalência na italiquice, se não percebestEIS. :D

      Superstar...? Dafuq? Já toquei nos Restauradores, no Santiago Alquimista e no festival de Almada, but that does not a superstar make...

      Abraços

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    5. Que modéstia... a nova coqueluche do Porto Canal, citado repetidamente no Universo Porto. Um sinhor... :-)

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  2. @Lápis
    Oh, foi mais pela vodka...
    Já a tua parte é o exagero que devemos aqueles com que simpatizamos. Fico contente por isso, mas fere a pouca modéstia que ainda me vai sobrando.
    Ah, e é também um profundo disparate. Mas isso, a malta que passa pelo DPCA sabe. Por isso passa.
    Vou-te dizer, rapazote, se percebesses alguma coisa de bola, tinhas aqui um belo tasco. Tinhas sim senhor.
    Abraço. Portista duma figa. :)

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    1. Não, lamento discordar mas não: nada a ver com simpatias, gosto genuinamente de te ler. Só isso. E não percebes um boi de bola. Também isso. Já eu, dou uns toques, tipo logo abaixo de mim está Guardiola.

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  3. @leitores incautos
    Desculpem o interlúdio dedicado ao disparate, mas é tanto culpa minha, como é do Capela o 5LB não ser campeão.

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  4. Ora então, muito boa noite.
    Vim à procura do Silva. O da Tasca.
    Ouvi dizer que ficou esquecido por aqui. Não veio para o jantar e eu já estava preocupada. Ainda para mais hoje havia bola de carne e queijos, daquela que ele adora...
    Passei no estabelecimento e... tudo fechado! Não é hábito!
    Felizmente encontrei um papel mal-amanhado e bem amarfanhado, caído a poucos metros da porta, a avisar a clientela de que hoje visitava a concorrência.
    Andou a dar na vodka?! Ui ui, bonito! Vai embirrar de dormir sentado na garagem, estou mesmo a ver. Nem este frio o demoverá. Seja, a mim que me importa!
    E não me posso esquecer de mandar uma nota de desculpas à Joana Solnado, coitada da cachopa, que nunca se lhe conheceram estas misticidades que lhe aponta. Filha de peixe nem sempre sabe nadar.
    Pronto e desculpas à malta daqui. Aposto que virou uns quantos abraços a uns tantos fregueses incautos. É sempre assim. menos mal, certo?
    bem, obrigada por tomarem conta e até um dia destes!

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    1. Boa noite estimada menina, seja muito bem aparecida. O seu Silva passou por cá, pintou a manta e foi-se, com a minha ajuda.

      E sim, ele dá-lhe na bodka como gente grande. Mais que abraços, diz que beijou gente sem jeito, na testa. Como irmões, claro está.

      Aposto que já está de volta ao ninho, feliz como em nenhum outro lugar. Que passem bem.

      E a menina volte quando quiser, com ou sem ele.

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    2. É Alexandra!!! Credo, coitada da cachopa! O meu cérebro recalca o nome de gajas bastante feias...

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  5. Caro Lápis,
    Parabéns e obrigado pela ideia do Speakers' Corner, uma vez que pude desfrutar de um texto ótimo do dono da Tasca do Silva, mesmo que numa "outra tasca".
    Quanto ao texto, está fantástico, como de costume, nada a que um cliente e frequentador assíduo da Tasca como eu já não esteja habituado, e depois, com soundtracks desta categoria, como resistir? Impossível!
    Abraço azul e branco para ambos.

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    1. Já o disse e repito: Silva a parsidente!

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    2. Depende do ordenado :)
      Obrigado ao xôr Resende. A7X \m/

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    3. Apoio totalmente! Acho que podemos começar a formar uma comissão de candidatura, como aquela que tem JNPC sempre que há eleições :-)

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    4. É a vaga de fundo, finalmente! Arreda que eu não sei nadar, o Senhor me valha. :)

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