A noite demorou uma pequena eternidade antes de, exausta, se render à alvorada do novo dia. Estava demasiado ansioso pelo que me esperava, a ponto de não ser capaz de dormir mais que uma hora de cada vez. A cada despertar, a mesma exclamação indignada perante o veredicto digital do despertador do quarto: Ainda?
Finalmente soou, destruidor, quando estava já confortável no abraço de Morfeu.
Raios para isto! O crepúsculo ainda reinava sobre
Carnidul, mas nada me faria parar até estar fora da porta do hotel.
Antes de se despedir, o motorista de ocasião
do dia anterior tinha sido perfeitamente claro e conciso nas instruções. Pela manhã, encontraria na recepção um envelope deixado ao meu cuidado. A partir daí, "
tudo deveria ficar claro", disse-me antes de arrancar.
A curiosidade era demasiada e fui directo ao envelope. Num misto de excitação e receio, mantive-o selado até estar discretamente sentado num dos recantos do salão do pequeno-almoço. Olhei em volta, duas vezes seguidas, e abri-o mal confirmei que ninguém me observava.
Um bilhete de comboio. De facto, era tudo o que precisava de saber. O destino era obviamente o Porto e a partida estava marcada para as... de repente, o mundo desabou sobre mim. A partida estava marcada para as oito da manhã, na estação de Carnidul - Santa (Leonor) Pinhónia! Sem conseguir precisar ainda a dimensão da minha tragédia, mirei o telemóvel: 7h41.
Saltei da cadeira e passei a voar pela atónita maître, gesticulando que me explicaria mais tarde. Não sei se percebeu ou não, mas soube-me bem fazer-lhe aquilo. Petits revanches que dão sabor à vida.
Às 7h43 já buscava ansiosamente por um táxi na esquina mais próxima, procurando assim aumentar a probabilidade de sucesso. Passou um, ocupado. Outro, ocupado. Outro, vazio mas já com destino, tal a indiferença perante os meus gestos descontrolados. 7h47 e nada. Vou perder o comboio, não acredito! E vou perder a oportunidade... Não! Não vou desistir.
- Desculpe, senhora, sabe-me por favor indicar para que lado fica a estação de Santa Pinhónia?
- Bem, assim de repente...
- É longe daqui? - interrompi.
- Não, não é muito... uns quinze minutos...
- A pé?
- Não, credo! De carro!
- ...
- E para que lado fica, se for a pé?
- Bem, deixe ver, é para ali - apontando - Sempre em frente e vá perguntando...
7h50. Sabia que a pé jamais chegaria a tempo. Olhei em redor e nem um táxi em vista. Tinha de tentar o impossível. Após uma rápida avaliação de algumas parelhas carro/condutor paradas no semáforo à minha frente, fiz a minha opção.
- Desculpe - disse com a maior calma que consegui pelo vidro entreaberto. - Lamento incomodá-lo, mas estou numa situação de extrema urgência... Reparando que as minhas palavras provocaram algum interesse no alvo, continuei sem me deter:
- Fui-avisado-em-cima-da-hora-que-tinha-de-embarcar-para-o-Porto-de-comboio-às-8-da-manhã-para-uma-missão-importantíssima-cujo-conteúdo-não-posso-revelar-mas-que-lhe-garanto-ser-mesmo-mesmo-importante-e-se-o-senhor-não-me-ajudar-não-tenho-hipótese-de-lá-chegar-a-tempo-e-assim-concluir-a-minha-missão-importantíssima-e...
- Tasse méne, entra aí q'eu levo-te, bacano...
- Obrigado...
Já dentro do carro, dei por mim a pensar "por que raio escolhi este tipo?". Um puto gingão, com ar de activista universitário sem pressa para concluir a primeira cadeira, aliás demasiado relaxado para aquela hora do dia...
- Atão méne, tás fixe?
- Ah sim, tudo bem. Agradeço-lhe muito pela ajuda.
- Ya méne, na boa. Tásse...
- Acha que chegamos a tempo?
- O tempo é relativo, tázaver?
- Sim... não, neste caso não é. O comboio sai as 8h da estaç...
- Pode sair, pode não sair. E saindo, vem outro a seguir. Takireasy!
- ...
- Fumaí um tarolo p'a relaxar, méne! É da boa, marca Ventoinhas, tázaver? (riso troglodita)
- ...
- Tás abananado... pensavas que o Ventoinhas era só da branca, né? Nah, é gama completa... du best!
- Por favor amigo, o mais rápido que conseguir, sim?
A medo, voltei a olhar para o telemóvel. 7h56. Estava frito.
Cheguei a Santa Pinhónia quando o relógio da estação já marcava 8h04. Tudo perdido. Dirigia-me cabisbaixo para o balcão de informações quando se ouviu nos altifalantes da gare: "Vai partir da linha nº1 o comboio T(r)eta-Pendular com destino a Porto - Campanhã". Mal queria acreditar! Disparei em direcção às plataformas de embarque, procurando orientar-me enquanto corria. Lá estava ela, à distância, a nº1 - e nela, o meu objectivo. Enquanto me aproximava já rejubilante, eis que se ouve o apito e o revisor começa a agitar a bandeira. Nããoooooo... Agora não me vão fazer isso!
- ALTO! SOCORRO! AJUDA! AAAAAALTO!
O grito foi da tal ordem estridente que até o revisor o ouviu, lá do longe. De imediato, sinalizou para o condutor. Consegui.
Nem nove da manhã eram e já tinha esgotado toda a minha energia para o dia. O que viria a seguir? O meu estômago fez questão de responder, lembrando-me que ainda estava em jejum. Fui até à carruagem-bar saciar-lhe o apetite e regressei ao meu confortável lugar. Encostei a cabeça por um momentos. Quando voltei a dar por mim, estávamos parados em Coimbra, a cerca de cem quilómetros do destino.
Tinha sido retemperante aquela soneca imprevista, mas agora a adrenalina estava de regresso para não mais arredar pé. A expectativa de conhecer Francisco Che Marques, famoso líder da Resistência Nortenha, tomou conta do meu pensamento. Como seria? Como me iria receber? Em que alhadas me ia meter agora? Rapidamente, recentrei o foco no meu trabalho, na reportagem que queria fazer. Peguei no bloco de notas e comecei a desenhar a entrevista. Sem que desse por isso, estávamos nas Devesas, a penúltima estação. A partir daí, guardei o bloco e deixe-me arrebatar pela vista enquanto atravessava o rio. Douro, como as suas gentes, dizia-se.
Quando desci do comboio, o estômago voltou a dar sinal de vida. Desta vez, em forma de formigueiro regado a suores frios. Sim, estava com medo. Sozinho no capital do Norte rebelde.
Eu saí, todos os demais passageiros saíram e aos poucos a plataforma foi-se esvaziando, até que só lá restava eu. Nada suspeito, pensei, aqui sozinho e sem comboios a chegar. Resolvi descer as escadas rolantes para a passagem inferior, a ver se me deparava com alguma coisa fora do comum.
Mal comecei a descer, um encapuzado - vindo do nada! - colou-se ás minhas costas e segredou: "No fim das iscadas, bira à direita e bai até ao fundo e sobe até à rua, carago. Shhh, nem uma palabra!"
Ao chegar à rua que passava nas traseiras da estação, detive-me, procurando pela minha boleia. Ninguém parecia interessado em mim, excepto dois lixeiros junto ao seu camião de trabalho, a uns vinte metros do outro lado da rua. Deveriam estar a chegar, pensei. Voltei a cruzar o olhar por todo o espectro visível e nada. Só os lixeiros continuavam a olhar para mim, embora não fixamente. Como se tivessem receio de... Será? Fixei o olhar num deles e rapidamente veio o ligeiro abanar da cabeça, convidando-me a aproximar.
Segui-os até à traseira do camião, que estava junto a um muro, abrigada de olhares curiosos.
- Bista isto, rápido. Depois suba aqui e agarre-se. Shhh, nem uma palabra!
Pela primeira vez na vida, vesti uma farda de colector de resíduos, como agora se designa nos meus N.A.T.A. de origem. Subi a uma pequena plataforma numa das laterais da traseira e agarrei-me com todas as forças no local apropriado. Se me pudessem ver agora, Johnny B. Gode a andar à guna na traseira de um camião do lixo... e estava a adorar!
Não sei quanto tempo demorou até chegarmos a um amplo parque de cimento onde descansavam outros guerreiros do combate à sujidade, perfeitamente alinhados, inertes, à espera de um condutor que os devolvessem à vida. O odor era intenso, mesmo se não especialmente desagradável. Estaríamos, por certo, nas instalações da empresa de recolha de lixo.
O meu camião deteve-se, finalmente. Ainda não tinha tido tempo para descer e logo ouvi "Siga-me, cabalheiro. Shhh, nem uma palabra!"
Começava a mexer comigo aquele shhh. Lembrei-me da maître, novamente. Vaca, toma lá que já almoçaste. E sorri, perante o espanto daqueles por quem passava no momento.
Já dentro de um dos grandes armazéns, disseram-me para subir umas escadas metálicas, ao cimo das quais se situavam os escritórios. Já lá em cima, apontaram-me para uma determinada porta.
-
Entre Johnny, tenho estado à sua espera.
- Francisco Che Marques?
-
O próprio. Que tal essa viagem?
- Bem, obrigado.
-
Quase perdia o comboio, não foi?
Mas safou-se e está aqui, que é o que interessa.
Como é possíbel, perdão, possível? Toda a gente tem redes de espionagem neste país? A figura do famoso líder da resistência aparentava ser tudo menos implacável e assustadora.
Um tipo perfeitamente normal, pareceu-me.
- Senhor Francisco, é uma honra...
-
Ora, deixe-se disso Johnny, você é que é a lenda aqui.
Jornalista de renome mundial, vários trabalhos distinguidos com os prémios mais importantes, um verdadeiro craque, como costumávamos dizer.
Mas siga-me, que aqui não é seguro.
Descemos as mesmas escadas por onde tinha subido, à nossa espera estava um automóvel, vidros escurecidos e impenetráveis na parte traseira. Entrámos ambos para o banco de trás e o condutor arrancou.
-
Em que lhe posso ser útil, Johnny?
- Bem, na verdade, eu é que lhe quero ser útil. Ou melhor, ao seu país. Quero fazer uma reportagem que mostre a todo o mundo o que se passa de verdade em Portugalistão. E para isso, conto com a sua ajuda. Explique-me o que se passa aqui. Porque existe uma Resistência. Resistem a quê ou a quem?
-
O a quem é óbvio, não?
Ventoinhas, o Burlão.
E a todo o seu regime opressivo e ditatorial, que instalou em Portugalistão desde há vários anos.
- Entendo que tudo começou com o futebol...
-
Sim, primeiro foi o futebol.
Na altura, chamávamos-lhe O Polvo, tal a dimensão da rede tentacular que montou de forma a controlar todos os órgãos que tutelavam a modalidade, em benefício do NeNfica, o clube do seu e de outros regimes passados.
- E o que se passou a seguir?
-
Apesar da gravidade, cingia-se ao plano desportivo, pelo que ninguém antecipou o que se seguiria. O sucesso do "modelo" foi de tal ordem e a promiscuidade com outras instituições e figuras já era tamanha, desde a polícia de investigação aos procuradores e juízes, passando pelos políticos que os nomeavam, que o finório sabujo conseguiu convencer meio-mundo de que conseguiria replicar o sucesso da sua "gestão" na liderança do próprio país!
- Mas como? Sem eleições?
-
Sem eleições!
Um primeiro-ministro que alegadamente sufocou engasgado com uma chamuça, um presidente compulsivamente internado por suposta esquizofrenia e, de repente, criaram-se condições para o aparecimento de um líder transitório, nomeado pelo parlamento (
ele próprio já dizimado em função das "crenças"),
para conduzir o país até um novo processo eleitoral.
Processo esse que nunca aconteceu, porque entretanto Ventoinhas se fez general e assumiu o controlo do exército.
- Incrível... como foi possível tudo isso? As pessoas não se revoltaram? Não saíram à rua para se manifestar?
-
Pois, parece impossível, não parece?
Falta aqui uma peça fundamental para entender o puzzle:
os media.
Ainda no NeNfica, já Ventoinhas controlava praticamente todos os meios, fossem eles jornais ou televisões. Não foi difícil convencê-los a não "dar cobertura" aos seus movimentos de bastidores, antes contando histórias para embalar a populaça - que, para piorar, é maioritariamente do NeNfica, pelo que mais fácil foi deixarem-se seduzir.
- Uau... mas diga-me, nenhum meio se opôs a isto? Ninguém tentou expor a verdade?
-
Claro que sim. Houve sempre quem resistisse até não ser mais possível. Olhe, os Mártires da Sábado, já ouviu falar?
- Mártires de Sábado? Não...
-
DA Sábado.
A Sábado era uma revista que se atreveu a publicar um artigo sobre o Ventoinhas, quando era apenas presidente do NeNfica, que dava conta das suas burlices e consequentes problemas com a Lei. Um erro fatal.
- Fatal? Como assim?...
-
Na altura da publicação, Ventoinhas não reagiu. Mas guardou memória e rancor. Um dos seus primeiros actos públicos após usurpar o poder foi prender e fuzilar todos os que conseguiu encontrar da redacção da Sábado.
- Que horror...
-
Sim, mas além da satisfação da vingança, serviu de aviso para todos. Não iria tolerar oposição.
Quedei-me uns momentos em silêncio, como que a absorver a monstruosidade da coisa. E o real perigo que efectivamente corria em estar ali. Mas com o "Che" estaria seguro. Voltei à conversa.
- E o Francisco, como se juntou à Resistência?
-
Eu não me juntei, eu fundei-a, juntamente com mais alguns companheiros Portistas.
Ainda liderava a comunicação do Clube quando o golpe se deu.
Percebi de imediato que seria uma das primeiras vítimas, se fosse encontrado.
Eu e muitas dezenas de companheiros abraçamos a clandestinidade desde então.
- E o clube, o
FC Porto, ainda existe?
-
Sim... mas não.
Todos os verdadeiros Portistas que estavam no Clube foram presos ou perseguidos.
No entanto, como o NeNfica precisava de adversários para derrotar, Ventoinhas instalou homens da sua confiança na liderança - no Porto e em vários outros clubes.
- Uma
farsa, portanto.
-
Sim, aliás já antes era, só que agora é oficial.
Ironicamente, o actual presidente do meu Porto é o filho do nosso grande líder, o melhor presidente de sempre de toda a história do futebol mas cujo actual paradeiro é desconhecido.
O filho, esse, é o fantoche perfeito para o papel.
De repente,
um estouro vindo de baixo do carro, uma travagem demasiado brusca e o motorista perde o controlo do carro, que embate numa qualquer superfície e depois capota em cambalhotas sucessivas. Ambos seguíamos sem cintos de segurança, pelo que fomos de imediato projectados. Quer dizer, eu sei que fui. Mas a minha "viagem" foi curta, bati com a cabeça no encosto do banco da frente e logo de seguida num vidro lateral, perdendo os sentidos.
Lembro-me de ter acordado ainda dentro do carro capotado, cheio de dores por todo o corpo, com maior prevalência na cabeça. Ao virar o pescoço, vi o condutor, inerte e ensanguentado. Do Francisco, nem sinal.
De repente, uma voz autoritária e trocista pareceu dirigir-se a mim.
-
Ora então quem temos aqui?
Mas se não é o jornalista bisbilhoteiro!
O general está ansioso por conhecê-lo...
Voltou a erguer-se e comunicou pelo rádio que segurava.
Alô, Alôo, central. Daqui Coronel Carlinhos Daniel, da P.I.R.O.C.A. Porto. Apanhámos o melro e temos um pardal morto, mas o filho do dragão escapou-se de novo.
Voltei a desmaiar.
(fim da terceira parte)
Do Porto com Amor,
Lápis Azul e Branco