outubro 2020

terça-feira, 6 de outubro de 2020

O dia em que o Futebol morreu

Não sei precisar quando terá sido ao certo, mas que ninguém se iluda: o desporto futebol que existiu durante quase um século faleceu com estrondo.



Hoje percebo a imensa sorte que tenho em ser filho da revolução, nascido ainda bem dentro do século XX,  que me permitiu disfrutar desse jogo único que já foi tudo. Mais afortunado ainda por ser Portuense e - obviamente - Portista, onde a dimensão intrínseca do Clube, concretizada no futebol, atinge níveis de afeição e sentimento de pertença dos mais elevados do planeta.

Conheci e cresci com um futebol que era o orgulho (quantas vezes o único) da Invicta, o seu baluarte como o presidente tão bem dizia (e fazia), o seu porta-estandarte que recusava sempre vergar-se enquanto as forças sociais e políticas que o iam rodeando se vendiam por um bilhete de ida para a capital. Sempre contra-corrente, sempre hirto a encarar de frente às adversidades. 

Ainda senti, por história contada de uma geração para a seguinte, o que era ser Portista e não poder ganhar depois de passar a ponte sobre o Douro. Cresci a ver o Porto crescer, a tornar-se maior que o mesquinho país que tem a infelicidade imensa de o acolher, até chegar ao topo do mundo através do seu futebol. Uma estória daquelas de encantar, só que em real. 

Esse futebol, sempre visto pela lente enamorada pelo Futebol Clube do Porto, era uma escola de virtudes, insubmisso, lutador até à última gota de suor. Quem as corporizava eram os jogadores, moldados cirurgicamente pela determinação e sagacidade de Pinto da Costa e pela inteligência e competência de Mestre Pedroto e (alguns dos) seus sucessores. 

Todos sabemos quem foram e o que significaram Rodolfo, João Pinto, Paulinho Santos e Jorge Costa, mas muitos mais passaram pela azulebranca de forma mais discreta mas ainda assim contribuindo com a sua quota-parte para o sucesso inigualável em democracia de quase quatro décadas. Nunca se fez só (nem sobretudo!) de artistas, mas também por lá passaram muitos, de Cubillas a Hulk, passando por Oliveira, Lucho, Quaresma e Deco - em comum, além do talento sem fim, o sentimento. Nuns espontâneo, noutros ensinado, mas sempre único e coerente. Todos em prol do Clube.

Os mais recentes, como Hulk ou Deco, tinham já e justamente a ambição de chegar a um clube mais poderoso, que lhes permitisse ganhar mais dentro e fora de campo. Deco conseguiu, Hulk só parcialmente, mas o que importa é o que acrescentaram e a inspiração de que serviram para os que se lhes seguiram. Todos percebemos a ambição natural de cada pessoa, o problema não está nela mas nas condições que foram adulteradas para que o desequilíbrio entre partes se tornasse tão gritante.

Todos nos forçamos a saber também que os tempos mudaram, primeiro mais lentamente e depois com grande velocidade. Pode ter sido com Bosman que a primeira bala foi disparada, mas seguramente que foi a ascensão da nossa tão querida Champions League a um patamar de negócio estratosférico e desregulado quem descarregou o resto do carregador. 



O cheiro a dinheiro fácil e garantido, aliado ao passaporte dourado garantido a quem nele investisse, no questions asked, tornou-se um chamariz irresistível para clepocratas e criminosos dos quatro cantos do mundo se estabelecerem, de forma limpa e livre, na Europa civilizada. Foi o início do fim.

Se juntarmos a isto a total cumplicidade da UEFA e a constante cedência perante as exigências absurdas (para quem gosta do futebol como ele era) das maiores ligas europeias, temos a cova aberta e o caixão a ser carregado em ombros.

Chamemos-lhe negócio, indústria, o que quisermos, sempre seguido de rentável, mas não lhe chamemos futebol. Sempre houve e haveria clubes maiores e mais poderosos, fruto das suas idiossincrasias e circunstâncias geo-políticas, sociais e demográficas. O Real Madrid, o Barcelona, o Bayern e mais alguns "nunca" deixariam de o ser, mas como compreender e aceitar que outros campeões do passado, também eles gigantes nas suas realidades, tenham sido relegados para uma quasi-eterna penumbra por força dos petroeuros e similares, por troca com os paraquedistas Chelsea, PSG, City e demais "aberrações"? Ou um Mundial no Qatar? 

Como pode o futebol ser global se Porto, Ajax, Olympiacos, Anderlecht, Celtic, Roma ou Marselha estão impedidos de lutar com armas minimamente equivalentes? Como entender que clubes tão fortemente identitários e identificados com as suas regiões não as consigam representar condignamente com jogadores das suas fileiras? Não para lutarem todos os anos pelo ceptro europeu, porque estaria naturalmente fora da sua dimensão, mas para conseguir intrometer-se a espaços, como "sempre" aconteceu.

Só o Liverpool parece ter escapado à sina e apenas porque foi - também ele - comprado, embora sem perder a identidade (bem pelo contrário). E pode parecer contrasenso (talvez seja...), mas é um exemplo que abre uma pequena janela de esperança de que talvez seja possível... um futuro diferente, ainda distópico só que não tanto, em que o valor da identidade prevaleça sobre o investimento cego, surdo e mudo e que o equilíbrio dentro de campo reflicta as diferenças "naturais" entre clubes.

Pior que este reshuffle da hierarquia dos clubes do velho continente, é a forma como aconteceu e as implicações na forma de viver e sentir o futebol por parte dos jogadores. O amor ao clube e a antes indissociável aspiração máxima de representar as suas cores, gentes e valores desapareceu. Ou melhor, existe mas é de plástico, para russo ou árabe ver. É que a doença não se restringe ao topo, está disseminada de cima a baixo ao ponto de qualquer Wolves ter a capacidade de ter vários titulares da selecção portuguesa.

Hoje, os miúdos borbulhentos que não passam ainda de projectos de jogador já têm bem claro que o objectivo é chegar ao clube que lhes garanta uma vida financeiramente "feita" no pós-futebol, seja ele qual for. Jogar pelo clube grande da cidade ou do país é, na grande maioria das geografias, apenas um trampolim provisório e para encher de orgulho o avô (porque os pais já estão a pensar no passo seguinte), excepto nos casos em que coincide com esse clube ser do tal topo longínquo onde só cabe uma dezena.

Por fim, é triste constatar que mesmo o amor ao jogo sobrevive em cada vez menos jogadores e nada poderia ser mais fatal do que isso. O futebol como eu o conheci, com que cresci e que vi também crescer, está em vias de extinção. E só não está - nunca estará? - extinto porque ainda sobrevive nas ruas, nos pelados e nos sintéticos. Vive dentro da alma das crianças que ainda não sabem e das que sabendo não se importam e dos "veteranos" que nunca chegaram a ser. Essas são as casas onde o espírito do futebol livre ainda vive, esses somos todos nós que do futebol apenas recebemos emoções.

A reflexão é muito mais extensa e complexa do que isto, que não passa de um simples desabafo. O futebol pode estar morto, mas longa vida ao Futebol!



Sobre a loucura destes últimos dias do mercado do Porto, não me quero alongar muito. A péssima, melhor, inexistente gestão a médio prazo empurra-nos sempre para as mãos dos que não tem nem pressa nem falta de dinheiro. É estar sempre à espera de aproveitar a melhor oportunidade, que muitas vezes não deixa de ser má. 

Se já há muito nos habituámos a ignorar olimpicamente toda e qualquer declaração do Presidente sobre entradas e (sobretudo) saídas, não deixa ainda assim de ser dramático o total desbaratamento dos sub-19 vencedores da Youth League. É que há mentiras que doem mais do que outras e os que, como eu, ainda suspiram por ter na equipa jogadores que amam e vivem o Porto, não conseguem ficar indiferentes.

Lamentavelmente, o Porto em 2020 é exemplo de tudo o que se perdeu com o futebol-indústria, ao que se soma uma gestão em fim de ciclo, sem rumo e muitas vezes negligente. Os títulos regressados pela mão obstinada de Sérgio Conceição não podem nem devem voltar a servir de anestésico para que os Portistas regressam ao seu estado amorfo-catatónico. Não creio que esses tempos possam voltar de forma esmagadora, mas há ainda muito boa gente que não admite questionar as decisões da liderança de Pinto da Costa.

Esperemos para ver que nível competitivo irá atingir esta nova equipa, desejando ardentemente que seja o suficiente para nos levar ao bicampeonato, mas os negócios feitos remetem-nos para o primeiro ano de Lopetegui, com empréstimos sem opção de compra e para a inenarrável venda dos jovens jogadores da formação.

Nota final para Sérgio Conceição que, até prova em contrário, deverá ser considerado "cúmplice" desta estratégia sem estratégia - para o bem e para o mal e independentemente do que a seguir conseguir fazer com a matéria-prima. É que haverá sempre vida para lá desta época desportiva e o treinador campeão associou-se voluntariamente à ideia de que o futuro próximo da equipa principal passaria pelos vencedores de UYL. O que se constata é o exacto e doloroso oposto. Já há muito que aprendi a não sofrer com as possíveis chegadas, mas é-me ainda impossível não fazer o luto das saídas antes de tempo.

É certo que "isto da formação" tem também bastante que se lhe diga, mas fica para outra altura. Por agora, aguardemos pelo clássico de Alvalade e... StayAway Covid.

Um abraço sentido de gratidão a Danilo e Telles pelos bons serviços prestados e nada mais, porque Portista sou eu e vocês.


Do Porto com Amor,

Lápis Azul e Branco