Boa noite. Seja bem-vindo ao
90 Minutos e 57 Segundos, o seu programa de jornalismo investigativo de referência nas Nações Admiráveis e Tecnologicamente Avançadas (
N.A.T.A.). Hoje trazemos até si uma reportagem impressionante sobre um dos países mais obscuros e atrasados de metade inferior do planeta que, como é sabido, se organizam sob a designação Países de Indivíduos Farfalhudos Insolentes e Obsoletos do Sul (
P.I.F.I.O.S.).
O país em causa é o
Portugalistão, uma pequena nação periférica com pouco mais de 11 milhões de habitantes, dos quais pelos menos 14 milhões são apoiantes do regime lampiânico do
General Ventoinhas, que o desgoverna com orelhas de ferro desde há quatro anos.
A reportagem é da autoria de Johnny B. Gode - um dos jornalistas de investigação mais premiados da NATA - que foi obrigado a filmar com uma câmara oculta, dada a extrema repressão exercida pelo regime lampiânico.
Sem mais demoras, vamos ver a reportagem "
Portugalistão Encarnado: Um Polvo de Muitos Tentáculos", com o aviso de que pode conter cenas e linguagem eventualmente chocantes.
(
Genérico)
Acabei de aterrar no Aeroporto Zébio da Silva Tremoço, na capital Carnidul, e a primeira impressão é a de estarmos num qualquer país em vias de desenvolvimento, um daqueles mais fraquinhos da nossa amada NATA. Infra-estruturas modernas, boa rede de transportes públicos, trânsito infernal. Tenho a sorte de ter sido criado por uma empregada portugalesa, pelo que a língua não me é estranha. Optei por seguir de táxi para o meu hotel, liguei a câmara oculta e registei a conversa com o taxista:
- Ora boa tarde, para onde deseja ir o shôr?
- Boa tarde, vou para o Hotel Túnel da Luz, em Al-Lampião, sabe onde fica?
- Atão não sei shôr, um grande hotel como nome desse mítico lugar! Fica é um bocado longe, não vai ficar barato...
- Pois, entendo, é o que tiver de ser.
Tinha feito o meu trabalho de casa e sabia que o hotel não ficava a mais de 10 quilómetros do aeroporto, o que deveria representar um custo entre €15 e €20. Deixei-me ir sem questionar.
- Atão shôr, não é portugalês, certo? Nota-se pela roupa. Nem uma peça vermelha...
- Não, não sou, venho de Brexitland, um dos estados-membro da N.A.T.A.
- Ui, é gente fina... E o que o traz por cá? Não é um daqueles que vem tentar contaminar as cabeças da nossa juventude com ideias perigosas como a democracia e assim, poi'não? Ou enchê-las de mitos como a honestidade e a honradez, poi'não?
- Não, não, longe de mim (engulo em seco) ... venho apenas fazer turismo. Apreciar a vossa excelente gastronomia e o bom clima.
- Ainda bem! Por momentos, pensei que ia ter de fazer uma chamadinha...
- "Chamadinha"? Para quem?
- Para um amigo da Polícia de Intervenção do Regime Orgulhosamente Caceteira e Abusadora (P.I.R.O.C.A.), sabe como é... para lhe fazer umas "perguntinhas"... mas não se preocupe, já vi que vem por bem.
- Claro...
- A propósito da boa comida, deixe-me oferecer-lhe um voucher para uma das cantinas do Estado...
- Cantinas do Estado? A comida é gratuita??
- É. Quer dizer, para alguns. Se for gente do interesse do nosso querido líder Ventoínhas, tem direito a um voucher familiar, uma vez por semana. É ou não é um país maravilhoso?
- Parece... e quem paga esse sistema? Não causa mossa nas contas do Estado?
-
Ó amigo, isso já não sei. Ele há coisas que nem interessa saber! O nosso grande líder sabe como gerir a nação, é um especialista em coisas bancárias, tá a ver?
- ...
- Cá entre nós, eu acho que o homem tem uma impressora de notas, ehehehe! Fala sempre em grandes empréstimos e negócios e depois nunca se sabe o que acontece... mas a nação pula e avança! G'anda maluco o Ventoinhas!
- Certo. E diga-me uma coisa, é um país seguro?
- Seguro?? Seguríssimo! Desde que aquela corja da resistência terrorista foi corrida nunca mais houve problema. Quer dizer, pelo menos aqui, em Carnidul. Se for para a província, já não garanto nada, sobretudo lá para as badlands do Norte. Aquilo é só selvagens e terroristas... nunca ouviu falar do Francisco Che Marques?
- Não...
- Shhhh... nem se pode dizer esse nome. É o selvagem mais procurado pela P.I.R.O.C.A. Um agitador mentiroso que anda há meses a difamar o nosso querido Ventoinhas e outros ilustres membros do governo da nação. Um mentiroso, enganador, um grande filho do Pinto é o que é!
- Entendo, não se enerve... vou ficar pela capital, então.
- Faz muito bem. Até porque o resto é paisagem mesmo! (riso boçal)
- Então como se está a dar com a nova concorrência trazida pela UBER?
- U cuê?
- As aplicações de serviços de transporte. A UBER, Cabify, etc... Não há cá?
-
Qual quê! Nada disso. Ainda andaram por aí uns tempos, armados ao pingarelho, mas o grande Ventoinhas acabou com essa pouca-vergonha. Quer dizer, "diz que", porque não é oficial. Consta que tomou o assunto em mãos e criou uma tasca force especial p'á acabar c'aquilo: os Negligência Necessária. Em seis meses limparam-lhes o sebo a todes. Profissionalões, é o qué. Um órgulho.
- Limparam-lhes o sebo? Como assim? Recorreram à violência... ou pior?
- Violência? Não me faça rir. Aquilo é gente séria, do melhor que há por cá. Apenas lhes fizeram ver os perigos de desenvolver aquelas actividades! Foi... como se diz... uma acção pneumática!
- Seria profiláctica?
- Ou isso. Olhameste, a achar-se melhor que eu só porque vem do estrangeiro...
- ...
(vinte minutos depois)
- Ora cá estamos.
- Demorou um pouco... meia hora para cá chegar?
- Eu avisei shôr. Ora... são €75, já incluindo os suplementos de bagagem, guia turístico e a contribuição audiovisual da LampiõesTV.
- €75???
- Quer que ligue ao meu amigo da P.I.R.O.C.A.?...
- Deixe estar, aqui está. Factura, por favor?
- Não, obrigado. E pode tirar a sua mala, já abri a bagageira. Depois feche-a, se não se importa, que sofro da coluna. E até breve. NeeeeeeNfiiiiiicaaaaaa!
Não tinha demorado muito para começar a perceber que a normalidade era mesmo aparente. Logo no primeiro contacto, fui ameaçado, coagido e autenticamente roubado. Por um taxista, veja-se bem. Decidi comer qualquer coisa ligeira no hotel, tomar um bom duche e descansar. O dia seguinte ia ser longo.
- Boa tarde, senhor, seja bem-vindo ao Túnel da Luz! Posso levar a sua mala por si?
- Sim, agradeço. O check-in?...
- Siga-me, por favor.
- Boa tarde, senhor, seja bem-vindo ao Túnel da Luz! Tem reserva?
- Tenho sim, aqui está.
- Muito bem, senhor B. Gode, o seu quarto é o 1893. Lamento informar que houve uma avaria no sistema de ar condicionado, pelo que de momento não está em funcionamento.
- A sério? Então e não me pode mudar de quarto?
- Não, lamento.
- Lamenta? Mas então eu é que fico prejudicado pelos vossos problemas técnicos?
- Pois, lamento senhor. Estamos cheios. A não ser que...
- A não ser que?...
- Estou a ver aqui no sistema uma reserva que ainda não foi confirmada. Normalmente, eu não poderia fazer nada para o ajudar, mas se o senhor me ajudar a mim também...
- ?...
- "Ajudar a mim também"...
- Ah, estou a ver. E de quanto seria essa ajuda?
- Creio que €50 desbloqueariam a situação, senhor. Em dinheiro vivo.
Estavam mais de 30º nesse dia, pelo que imaginei que no quarto rondasse os 40º. Paguei os €50 e subi ao quarto. O ar condicionado estava a funcionar, tinha valido a pena ser extorquido, pensei. Mas cedo demais. Não havia água quente no quarto. Liguei para recepção, já antecipando a resposta:
- Sim, boa tarde, estou a ligar do 1904. Acabei de me instalar e reparei que não há água quente. Podem resolver o problema, por favor?
- Deseja mudar de quarto, senhor?
- Não pago nem mais um cêntimo, minha senhora!
- Pagar? Quem falou em pagar? Obviamente que será sem qualquer custo adicional, senhor!
- Ok, então está bem... mas espere, nesse novo quarto, o AC está a funcionar?
- Isso é que já não garanto, senhor.
- Esqueça.
Entretanto, batem à porta do quarto. Espreitei, era o camareiro com a minha mala.
- Entre. Pode deixar aí ao fundo, por favor.
- Muito bem, aqui está. São €20, senhor.
- Desculpe??
- Taxa de transporte, senhor. Eu perguntei se podia levar a sua mala, o senhor disse que sim, logo aceitou o serviço.
- Mas você não me disse que me ia custar dinheiro!!
- Ora, o senhor não perguntou. €20, por favor. Detestava incomodar a segurança do hotel com...
- Sim, já sei. Tome lá e desapareça.
Estava há três horas no Portugalistão e já tinha sido roubado três vezes, em plena luz do dia, com cobertura "legal" e sempre com a espada do "regime" a pairar sobre a minha cabeça. Só de imaginar o que me poderiam fazer ao jantar, perdi o apetite. Tomei um duche de água fria e fui-me deitar.
Porque ainda era cedo e o sono ainda não tinha chegado, aproveitei para fazer zapping pela televisão local:
Canal 1
Canal 2
Canal 3
Canal 4
Canal 5
Canal 6
Canal 7
Canal 8
Canal 9
...
Canal 97
Canal 98
Canal 99
Optei por ler um livro até adormecer.
(fim da primeira parte)
Do Porto com Amor,
Lápis Azul e Branco